Page 126 - Da Terra
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TOQUE DE ORDEM


            Perdi-me entre dois mundos. Pelo dia, ouço histórias calejadas de tempos an gos, palavras grisalhas de tão velhas, esquecidas,                                                                          Making of

            e anoto no caderno verbos trabalhosos, pesados, arquejantes. São histórias tocadas pela ordem, as coisas feitas no seu tempo para
            que o tempo não desse cabo delas. Escuto estas mulheres e estes homens e pergunto-me como aqui chegaram? A esperança
            média de vida era menor, advertem-me. Nada que não soubesse já. Mas e a esperança, que tamanho  nha? Alguém resis u para

            que as terras con nuassem povoadas. Ou aparentemente povoadas, algumas já só por placas esba das onde a toponímia tosca se
            conserva para que não nos percamos no decorrer dos passeios e das caminhadas. Percebemos melhor certos versos ouvindo esta
            gente, há nestas vozes a cor da terra e os corpos são pedregosos e na orla dos olhos corre uma água que faz acreditar estarmos

            perante a própria natureza quando para eles olhamos. Alguém dirá, com arrogância, que estavam mais próximos das bestas, eram
            selvagens, bárbaros, animalescos. Que barbárie poderá haver em fazer pela sobrevivência nada tendo de mão beijada?


            Num futuro próximo, esta gente seremos nós. Havia neles, contudo, uma con guidade com a terra que enraizava carne e ossos,
            diferente do alheamento com que hoje perscrutamos prateleiras em busca de milho transgénico. Esse mundo rural pra camente

            desaparecido para dar alas à produção intensiva, mecanizada, industrial, tem em mim um eco que perdura como está ca no
            ouvido interno da consciência. À noite frequento teatros e concertos, leio romances sofis cados, obras de filosofia que também
            cavam  o  pensamento  para  semear  ideias,  ouço  música  de  câmara  num  diz-concerto  poé co  com  palavras  de  escritores
            admiráveis. Não chega. É-me preciso abrir o corpo aos sons do vento, da respiração, dos búzios, do vasculho a raspar na pedra onde

            a lenha crepita, o som da vide a ser dobrada e do fruto a cair na terra, esses sons quase inaudíveis de um mundo outro que não este
            onde o ruído se impõe e atemoriza.


            O tumulto ganha forma na cidade, ninguém escuta o silêncio porque o silêncio não existe, está sempre ocupado pelo restolho das
            formas. As asas de um insecto, o peito palpitante, o motor da ventoinha, a cadeira a ranger. Pior é porém constatar quão poucos são

            os que escutam aquilo que em silêncio canta. Ler, por exemplo, sem pronunciar palavras. E, sobretudo, ver. Isto é, contemplar, olhar
            para as coisas sem julgá-las ou sequer nomeá-las. Simplesmente olhá-las. Pagamos para ser escutados. A água ainda corre nas
            fontes, mas o trânsito, as sirenes, as buzinas, os motores, sobrepõem-se à fluidez dessa harmonia tudo ensurdecendo. É uma

            orquestra estrepitosa, a da cidade. E eu preciso de sossego, quero ouvir a videira a gerar uvas antes destas chegarem à garrafa.
            Quero ouvir a massa a fermentar, o som da levedura no corpo que envelhece. Não sei, acredito que no líquido repousa um som.
            Quero trazê-lo à garganta, para que por mim adentro escorra dando forma à melodia do que adolesce sem pressa de sen r.


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